19 maio 2006

As piores visitas


Milhões de pessoas vem às Cataratas. Elas vem olhá-las. Vem vê-las. Olham-na e vão embora. Esta é maneira mas estúpida de se estar defronte de uma Deusa. Mas é a maneira preferida desde que olhos começaram a esbugalharem-se perante a sua beleza. É a maneira que interessa a indústria do turismo – ao meu ver parte integrante da industrial cultural de massa.
Ao consumir as "quedas d’água" visualmente essas pessoas se sentem satisfeitas. Viram-nas com os olhos. Eu preferiria que essas pessoas com olhos não viessem. Que viessem os cegos. Cegos do mundo todo. Esses sabem enxergar profundamente melhor que os que vêem. Eles contemplam, sentem, olfateiam, escutam com seus ouvidos, escutam com os ossos, com a pele. São acariciados pelo vento, pela neblina. Notam, com a pele, a presença das borboletas, se auto-informam sobre a existência de pássaros, de formigas, de aranhas.
Bem-aventurados os cegos que se trazem aos pés da Deusa. Bem aventurados os cegos que se entregam ao seu gozo. Que se fundem no seu gozo. Que acariciam sua intimidade. Bem aventurados os dedos dos cegos que exploram suas cavidades, que lhe acariciam a pele, os pelos, que levam o amrtar* do seu gozo à língua com a ponta de seus dedos. Que a lambem. Que participam de sua orgia de sua festa de sua auto-satisfação.
As Cataratas não querem que a veja. Não se importa com quem quer vê-las, para satisfazer seus olhos. Ela, a mãe, se interessa por aqueles que querem fundir-se nelas. O restante, tão celebrados pelas estatísticas do turismo local, não passam de estupradores visuais.
Os estupradores visuais
Na lista dos estupradores visuais incluo os charters – aqueles (vôos)
que fazem day-tour (veja tudo em um dia). Aterrissam, como um bando, ao meio-dia. Às 17h50 minutos decolam de volta para o seio da civilização. Decolam vazios. Os olhos sem memória. A mente não reteve nada pois qualquer memória foi confiada à máquina fotográfica – aquele aparelho, segundo Vilem Flusser, programado. Tão programado como o sistema ao qual pertence a máquina fotográfica, o turismo, os vôos charters e o estupro visual global do turista.
Outro visitante detestável: o visitante oficial. As Cataratas vomitam, suas entranhas se retorcem, ao sentir que ele chega. Eu já acompanhei um grande número deles. Não os cito por não ter conseguido permissão da Natureza. Mas esses são estupradores especiais. Os visitantes oficiais, reis, presidentes, primeiro ministros mal olham. O peso de seus cargos não lhes sai dos ombros. Ao caminharem pela trilha da contemplação ótica, eles andam retos, braços tensos, mãos abertas, sorrisos congelados. Os fotógrafos os seguem. Jornalistas – eu no meio deles – caçam-nos. Os clicks das máquinas programadas são para eles – os ladrões do (presente e do) futuro da humanidade.



A Água Grande aparecerá casualmente na foto, se os visitantes oficiais posarem para foto. Então ela aparecerá como cenário, pano de fundo. Na frente, aparecem os egos dos visitantes oficiais. Só então, talvez, as fotos apareçam nas primeiras páginas das revistas e jornais dos caçadores de momentos especais: presidentes prestigiam as Cataratas; fizeram-lhes o favor de visitá-las.
(Este artigo foi inspirado nas visitas oficiais de mandatários de todo o mundo nas quais participei como jornalista. Uma pena!).

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